Ninguém duvida do valor da Mona Lisa. Muito menos da sua unicidade. E é, em parte, essa unicidade que faz com que o seu valor seja “incalculável”. É fácil percebermos que estamos falando de um objeto único que, apesar de ter sua aparência amplamente reproduzida e incorporada à cultura popular, é facilmente distinguido de qualquer derivação. Também é fácil perceber que se alguém chegar vendendo a Mona Lisa, por qualquer valor que seja, é quase certo que estamos diante de uma falsificação.
Essa
unicidade do objeto junto com sua percepção de valor é a base do mercado de
arte. Mecenas e galeristas descobrem artistas que, por suas qualidades ou tipo
de vida ou comportamento, produzem obras únicas que são valoradas de acordo com
a percepção dos colecionadores e o quanto estão dispostos a pagar.
Daí a
disparidade de preços e a explicação do porquê um quadro do Banksy, semidestruído
por um triturador de papel embutido na moldura foi vendido por 1,4 milhões de dólares.
É uma obra única, irreproduzível e inseparável do seu meio sem que seja
destruída (definitivamente).
No mundo
digital as coisas se complicam um pouco. Vamos imaginar que um “objeto digital”
é qualquer coisa que possa ser representada por um conjunto de bits e que só
existe como objeto enquanto houver alguma forma de armazenamento que o possa
manter. Se eu faço um desenho no computador e não gravo o trabalho em um disco
ou outro dispositivo, esse “objeto” se perde quando eu desligar o computador.
Quando o desenho é gravado em um arquivo, esse desenho ganha uma “sobrevida” e
pode ser recuperado para ser visto ou refinado.
O mais interessante
é que o desenho deixa de fazer parte do meio. Se eu fizer um desenho em uma
folha de papel, é impossível separar o desenho da folha sem destruir o objeto
como um todo. Já no mundo digital, o desenho é meramente codificado em um
arquivo ou em alguma outra forma de armazenamento. A obra é separada do meio.
Tanto isso
é verdade que uma vez “gravado”, o arquivo do desenho pode ser copiado sem
perda. Uma cópia de um arquivo digital é tão completa e original quanto o
“original”. Esse mesmo desenho pode ser armazenado em uma quantidade enorme de
formatos de arquivos mantendo a originalidade do desenho em cada um deles.
Essa
característica do objeto digital abriu mercados e gerou oportunidades. Também gerou especulações sobre como garantir a originalidade de qualquer coisa
no mundo digital. Adaptamos nossas ferramentas do mundo analógico ao mundo
digital: para software, contratos de licenciamento; para imagens e textos,
copyrights; para modelos e algoritmos, patentes. E isso resolveu muito bem a
vida de produtores de conteúdo, mas deixou de fora todo o mundo do mercado de
arte que ainda não havia descoberto como se digitalizar. No máximo, o mundo
digital era usado para geração de catálogos e registros de compra e venda.
Ainda não havia uma “arte digital” que pudesse ser comercializada como tal.
Com a
chegada das tecnologias blockchain e das criptomoedas houve um momento de
inspiração: Assim como é feito com uma moeda digital, seria possível registrar
uma obra em uma blockchain e garantir assim a sua unicidade? Afinal, uma vez
gravado em um registro na blockchain o objeto torna-se único e imutável, certo?
Em cima
deste conceito criou-se um mercado que se prevê chegar a 35 bilhões
de dólares em 2022 com potencial para chegar a 80 bilhões de dólares em 2025 (1).
Com o
sucesso das criptomoedas e o medo de perder dinheiro entrando tarde no mercado,
foram criadas plataformas para vender e registrar essas novas obras únicas que
receberam o nome de NFT (Non Fungible Token, em inglês). No fim das contas,
trata-se do registro de compra de um objeto digital original que, pela natureza
do registro, não pode ser duplicado, copiado ou alterado. Algo como uma
escritura de propriedade digital sobre um objeto igualmente digital.
A ideia de
um objeto digital único foi concretizada por Kevin McCoy em 2014 com a criação
de Quantum, uma peça de arte digital cadastrada em uma blockchain.
Colocado a venda em 2021 na Sotheby’s com lance inicial de 100 dólares, esse
NFT foi arrematado por 1,4 milhões de dólares (2).
Mais
recentemente, o NY Times publicou matéria onde um ex executivo da Christie’s
está fragmentando, digitalmente, um quando do Banksy (ele de novo) em 10.000 pedaços onde cada
um será vendido como um NFT. (3)
O volume de
dinheiro envolvido nas transações de NFTs é tão elevado que há sempre quem
levante a lebre da lavagem de dinheiro. Não cabe aqui fazer essa análise, mas me parece que essa pressa de entrar nesse mercado é decorrente do histórico das criptomoedas, que passaram de formas de pagamento obscuros
de mercados, muitas vezes ilícitos, a ativos disputados e promovidos por
corretoras tradicionais; ninguém parece querer correr o risco de entrar tarde
no mercado e estão gastando por conta.
Um bom
exemplo dessa pressa é o Bored Ape Yacht Club (4), uma
comunidade para os donos de um conjunto de, no máximo, 10.000 NFTs lastreada na
blockchain do Ethereum. Nessa comunidade, o NFT funciona como a chave de acesso
ao clube e os valores cobrados por cada NFT pode variar muito. O próprio Neymar
comprou dois NFTs dessa coleção por 1,1 milhões de dólares (5). Uma das imagens está até sendo usada como sua
foto no seu perfil pessoal no Twitter.
Essa
exposição da imagem e sua reprodução em vários locais leva a confusão de muitos
sobre o que é realmente o NFT. Se eu posso copiar e reproduzir, onde está a
unicidade do objeto? Se eu posso copiar e criar derivações dos “macacos
entediados”, dentro do permitido pela lei de direitos autorais, o que é que o
NFT traz de novo? O que foi que o Neymar comprou?
O que ele
efetivamente comprou foi um registro em uma rede blockchain. Pelas regras de
criação desse registro, ele é único e não pode ser substituído por outro. A
imagem simplesmente funciona como uma representação do registro comprado, nada
além disso. Guardadas as proporções é como comprar uma cota de um investimento
hoteleiro. Você é dono de um certificado de propriedade de uma parte do negócio, mas não daquele quarto com vista para a piscina.
A imagem do
macaco entediado funciona como uma referência ao registro (token) na blockchain
e não se confunde com o próprio registro. Como qualquer outro objeto digital, a
imagem existe apenas enquanto houver um armazenamento que a persista. Da mesma
forma, o token persiste enquanto houver uma rede blockchain ativa com o seu
registro. O importante é que o comprador é proprietário do registro do token na
blockchain e não necessariamente do objeto digital usado para sua representação
que segue sendo copiado, divulgado e citado em diversos meios.
A
consolidação do NFT como objeto de valor é importante não pelos objetos registrados
ou pelos volumes de dinheiro envolvidos, mas, principalmente, pela possibilidade
de aplicação do conceito a outros ambientes digitais como plataformas de jogos,
mundos virtuais e outras novidades que o metaverso trará. Dentro de um
ambiente controlado como o de um mundo virtual onde jogadores interagem,
batalham e cooperam, torna-se possível atribuir propriedade “real” de objetos a
jogadores específicos. Aquele jogador que chega primeiro a uma nova área do
mapa do jogo pode ter a possibilidade de comprar um lote virtual onde pode
construir seu castelo ou sua fazenda. Essa compra pode garantir direitos dentro
das regras de funcionamento do jogo criando todo um novo fluxo de receita para
os editores. Um outro jogador pode se estabelecer como armeiro, criando armas
únicas que, dentro das regras do jogo, não podem ser duplicadas, apenas
trocadas com outros jogadores.
Essas
transações já estão acontecendo. No Sandbox, um mundo virtual baseado na rede blockchain
do Ethereum, já há transações de objetos como um iate, virtual, é claro, que
foi vendido como NFT no ambiente por 908 mil dólares. Também estão ficando
frequentes as notícias de “terrenos” virtuais no metaverso sendo vendidos por
quantias milionárias.
Só o tempo
dirá se estamos vivendo uma bolha de NFTs ou não, mas uma coisa é certa, o
conceito veio para ficar.